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domingo, 7 de novembro de 2010

Pensamento Ausente

A poesia – na sua forma própria, ou em prosa – encerra frequentemente um conteúdo existencialista e filosófico. Há muita poesia glosando a vida, as suas alegrias, o fado, o destino, o nosso lugar no universo, a ilusão, a sem-razão da dor ou a crueldade da vida. Os temas específicos podem variar, mas cantar ou chorar, de forma filosófica, o sentido da vida faz parte do reportório de dezenas de grandes escritores.

Que é que Cervantes fez, quando escreveu:

«Abençoado seja o que inventou o sono, a manta que cobre todos os pensamentos humanos, o alimento que satisfaz a fome, a bebida que apazigua a sede, o fogo que aquece o frio, o frio que modera o calor, e, finalmente, a moeda corrente que compra todas as coisas, e a balança e os pesos que igualizam o pastor e o rei, o ignorante e o sábio.»

Não será isso filosofia existencial, tanto quanto poesia?

O que é que o imperador Adriano fez nas vésperas da morte, ao escrever o seu epitáfio:

«Pequena alma errante, hóspede e companheira do corpo, para onde irás tu agora, pálida, rígida e nua, sem poderes brincar como dantes?»

E como classificar grande parte versos bíblicos do Eclesiástico, por exemplo?

Como classificar versos como:

«Goza da vida com a mulher que amas, durante todos os dias da fugaz existência que Deus te concede debaixo do Sol.
Essa é a tua parte de vida, entre os trabalhos a que estás condenado.
Tudo o que a tua mão possa fazer, fá-lo intensamente,
pois na região dos mortos, para onde irás,
não há trabalho nem inteligência, não há ciência nem sabedoria»?

Eles são obviamente filosofia, tanto quanto poesia. Eles são poesia existencialista, e filosofia existencialista. Não são necessários tratados, nem linguagem hermética, para se fazer filosofia.

E um exemplo maior disso mesmo é Fernando Pessoa. Poemas como a Tabacaria não são apenas exemplos sublimes e maiores do génio poético do homem. Eles são igualmente exemplos maiores do filosofar existencialista. Grande parte da poesia de Pessoa é também filosofia.

Oiçamo-lo:
«Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio.»

Trata-se, obviamente, de filosofia. Mesmo que ele a rejeita, e diz:
«E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.»

Ou quando diz:
«Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.»

Objectar-se-á: mas não será muito repetitiva a temática filosófica de Pessoa, e todos os exemplos citados acima? Não será que a poesia existencialista se limita, muitas vezes, a transmitir questões filosóficas sem profundidade, demasiado banais? Será que se pode fazer filosofia, no sentido mais exigente do termo, por via da poesia?

Que dizer, por exemplo, de um poema sobre o sentido da vida, como o Life de Charlotte Brontë, citado atrás. Nele, muito simplesmente, canta-se a esperança juvenil, defende-se em verso as «soalhentas horas da vida», e «agradecidamente, animadamente», pede-se que as gozemos «enquanto elas vão voando».

Serão eles também filosofia?

A minha resposta é sim. Num campo filosófico como o do sentido da vida, a poesia e a literatura podem ser formas maiores de filosofar. Compreender a vida, dar-lhe um sentido ou não, depende fundamentalmente dos nossos sentimentos, e não tanto da nossa razão.

A profundidade filosófica, neste caso, é indesligável da beleza, da forma, da arte, e não depende estreitamente do pensamento abstracto. Associa-se à alegria e à tristeza, à forma como traduzimos e nos dirigimos à nossa sensibilidade, e acordamos ou evocamos sentimentos e formas específicas de ver e sentir. A novidade e a profundidade, neste caso, estão aí - nas formulações capazes de nos emocionar, de tocar a nossa alma.

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